domingo, 13 de julho de 2008

Conto I - O Início

Era um jovem comum como tantos outros que existem nesse mundo, levava uma vida simples com seus pais na fazenda, ajudava nas tarefas locais e, mesmo sendo um pouco tímido e arredio, julgava-se feliz com a vida que tinha. Porém, desde que seus pais foram encontrados misteriosamente mortos na floresta, onde costumavam passear com seu cão labrador de pelagem amarelada nas tardes do início da primavera, quando o clima ainda está tão quente e não há tantos insetos para incomodar, sentia que não era mais o mesmo e coisas estranhas e sem explicação pareciam acontecer quando ele estava por perto.

Sua vida mudou drasticamente após a morte de seus pais, foi obrigado a mudar-se para a cidade e ter os bens herdados administrados por um tutor revelado na leitura do testamento de seus pais, que vivia na Europa e que ele sequer considerava existir.

No seu primeiro aniversário sozinho, sem seus pais resolveu ir ao cemitério, lugar que ultimamente vinha visitando com freqüência. Sentou entre as duas lápides brancas de mármore barato e perdeu a noção do tempo tentando entender não apenas a razão de ter perdido seus pais tão cedo, mas a forma trágica com que seus corpos haviam sido encontrados por ele próprio. Quando deu por si já era tarde, o sol sumia no horizonte e seus últimos raios deixavam o céu com um tom laranja esverdeado muito artificial. Levantou-se para ir embora e percebeu um pequeno objeto esférico exatamente no local onde ele estava sentado, se perguntou como não percebeu sua presença antes, e imaginou que aquilo seria um presente de seus pais, único que recebera em seu aniversário.

Passado alguns meses começou a sentir-se estranho, como se fosse observado o tempo todo. Por diversas vezes teve a nítida sensação de que estava sendo espionado, chegado a ver olhos escuros e sem brilho nos cantos e frestas de sua casa, sua escola, pela rua e em todos os lugares. Até em seus sonhos essa sensação lhe perseguia. E foi em um sonho que olhou mais de perto pela primeira vez o objeto que encontrara no seu ultimo aniversário, percebendo em sua superfície lisa e quase perfeita algumas marcas, como retas, paralelas, tangentes, ângulos e espirais, que pareciam terem sido feitas de dentro para fora. A partir deste dia deixou de se sentir intimidado pela sensação de ser vigiado o tempo todo, como se em posse deste objeto ele ficasse invisível aos olhos que via pelos cantos.

Mas aquele dia, exatamente um ano da morte de seus pais e desaparecimento de seu cachorro, havia acordado diferente, como se seu despertar fosse a continuação de um sonho real. Um assustador pesadelo. Vestiu-se rapidamente e enquanto colocava a camiseta branca e sem estampa olhou demoradamente para o objeto que trazia pendurado em seu pescoço, achando-o estranho demais para ser usado com um pingente, mas mesmo assim continuou com ele, vestiu uma blusa de moletom surrada, com capuz e zíper e saiu para uma caminhada, sem nem ao menos se alimentar.

Andou por ruas e quarteirões. Aquela sensação de ser observado estava diferente hoje. Não via olhos nas frestas, mas sentia que havia alguém em seu encalço. Avançando para próximo dele a cada passada. Assim perdeu a noção do tempo e a estranha sensação, que não chegava a ser medo, tomou conta de seu corpo e seus sentidos e andou o dia todo, passou ruas e quarteirões, deu voltas pela cidade inúmeras vezes, se afastou de seu bairro, caminhou até que, ao cair da noite, que para ele pareceu chegar logo após o meio dia, chegou a uma parte da cidade que ele não conhecia, onde havia vários terrenos baldios, e nas poucas casas e estabelecimentos comerciais decrépitos as janelas e portas estavam fechadas. Logo que o sol lançou seu último raio e sua luz se apagou por completo na barra do horizonte e o céu ficou iluminado apenas pelas estrelas dessa noite sem luar ele teve instinto forte e urgente de correr e se esconder. Temeu por sua vida, percebendo e aceitando o que vinha negando fortemente, revelando para si mesmo que a morte de seus pais fora causada por forças extra-humanas. Por uma força má e desconhecida, que o vinha observando há meses, que lentamente planejava um ataque derradeiro e que hoje decidira que era hora de dar o golpe de misericórdia, acabando com o último representante de sua família.

Correu como um desesperado pelo complexo labirinto que as ruas da cidade desconhecida projetavam. Suas pernas finas e seu porte magro não lhe ajudavam muito nessa hora. Segurava fortemente contra o peito o objeto que ele tinha como um amuleto sagrado, como se aquele pequeno objeto, ladeado por inscrições indecifráveis fosse capaz de mantê-lo a salvo da fúria assassina que o perseguia veloz como uma flecha. Correu mais rápido que pode, tropeçara no meio fio, sem, contudo perder o equilíbrio virara a esquerda e depois à direita – meu deus, como posso escapar disso? – mais uma vez à direita e pronto, estava acabado! Chegara a um beco escuro e fedorento, iluminado pelo néon, ora azul, ora vermelho, de uma boate barata, onde homens taciturnos de casaco preto entram rápidos e jogavam cartas até o amanhecer, apostando um dinheiro que não possuíam com homens que não conheciam sem se importar com suas vidas.

Sabia que sua única chance de salvação era usar o amuleto que possuía – usar corretamente o amuleto que possuía – mas nunca, desde que o encontrara, conseguira decifrar a mínima parte daquelas confusas riscas feitas no objeto que parece ser muito antigo. Subitamente vira-se para a direção de onde acabara de chegar, não fazia idéia de onde se encontrava. Apenas tinha certeza de que não podia se entregar, e não podia entregar seu amuleto àquele espectro que o perseguira, sabia embora sem entender como, que precisava manter aquele objeto próximo de si. Em um ato automático, levou rapidamente o objeto à boca e em menos de um segundo este já adentrava seu estômago vazio, pois desde o anoitecer do dia anterior não se alimentava.

Mal acabara de abaixar sua mão e sente que, embora não veja nada, não está mais sozinho naquele beco. Desesperado cai de joelhos, em um gesto misto de fraqueza e resistência, com tanta força e velocidade rasgando seu velho jeans e gerando uma escoriação em sua pele pelo atrito brusco contra o asfalto áspero e úmido.

Repentinamente ficara difícil respirar ali, como se a cada inspiração o ar fugisse de seus pulmões, ao invés de entrar e a cada expiração seu tórax fosse comprimido por uma mão que o envolvia. Força a visão a sua frente, mas não consegue distinguir nada entre os flashs coloridos que o néon jogava naquele estreito beco, azul – vermelho -escuro. Concentrou-se tanto e com tal força para enxergar algo que caiu em uma espécie de transe. Passou a ver seus movimentos como em um filme de suspense.

Do alto viu seu corpo de joelhos, que estranhamento já não era seu. Vê uma pequena mancha de sangue em cada rasgo recém-feito em sua calça, viu-se lá embaixo parado, olhando fixamente para frente. Alguém desatendo não perceberia que havia mais alguém naquele sombrio ambiente, mas ele pode distinguir, agora olhava do alto, um borrão parado, suspenso no ar, não maior que uma lata de lixo. Não pode distinguir braços, pernas, boca ou olhos, nem ao menos algo que se parecesse com uma cabeça. Quando percebeu a estranheza da situação, estando ele suspenso a mais de 3 metros do chão, contemplando ele mesmo ali no chão molhado e sujo, ajoelhado diante de uma figura disforme que flutuava como um balão de festa infantil, amarrado por uma linha imaginária em uma das pedras da rua para não sair voando até as nuvens negras daquele céu sem luar, percebeu o ridículo e irreal da situação e começou a pensar se já não havia morrido, ou então não estava louco, se os meses de solidão e o trauma da perda dos pais não tinham enfim levado sua sanidade junto com a esperança de um dia ser feliz, ou (em uma tentativa fútil de acalmar-se) apenas tendo alucinações causadas pela fome e pela sede – é, deve ser isso, devo estar tendo alucinações, devo ter ficado louco e... – viu do alto onde se encontrava, ele mesmo abaixo, movendo-se, viu seu braço direito levantando-se, primeiro com dificuldades, como se fosse um fantoche manipulado por mãos inexperientes. Em um movimento incerto e trêmulo seu braço fica completamente estendido, apontando para o céu, sua mão espalmada, os cinco dedos afastados e trêmulos como uma flâmula ao vento. Sentiu suor escorrendo por sua testa estreita, até acumular-se sobre as grossas sobrancelhas e escorrer pelas laterais de seu rosto comprido, mas não sabia se quem suava era ele próprio, flutuando no céu ou seu outro eu, ajoelhado no chão – oh deus, definitivamente devo estou louco! – a estranha figura que lá em baixo o observava sem olhos, que agora ele já não tinha tanta certeza de sua existência, parecia ter se movido mais para perto da pessoa que de forma tão submissa continuava dobrada sobre seus joelhos magoados, com o braço levantado e agora com os dedos unidos, todos os cinco em forma de cunha. O que olhava a cena do alto, neste momento sentiu seu pescoço formigar, sua cabeça pequena ficar pesada, tão pesada a ponto de não poder sustentá-la com a força de seu pescoço dormente, sentindo-se obrigado a segura-la com as mãos para que não despencasse lá do alto, levando consigo também o seu corpo, que agora formigava como se anestesiado. Voltou a olhar o sujeito ajoelhado – pro inferno com isso tudo, quando esse devaneio vai acabar? – desta vez ele, no chão, estava também com o pescoço em completa extensão, o olhar vago, voltado à mesma direção que os dedos unidos apontavam – como pode alguém dobrar tanto assim o pescoço e continuar vivo? – percebeu que o corpo não tremia mais, que nem um músculo se mexia, e permaneceu nessa posição por um instante que pareceu mais uma eternidade. A estranha criatura pareceu soltar um ruído dentro de si, como a batida rápida das castanholas de uma bailarina flamenca descompassada, o último barulho emitido, mais forte e penetrante, pareceu continuar ecoando naquele beco mal iluminado. Continuaria ecoando se o rapaz ajoelhado, em um movimento rápido como o de uma águia em seu vôo rasante em busca da escolhida caça, não tivesse mergulhado sua mão, seu punho e seu antebraço inteiro, até onde a dobra do cotovelo permitiu, através de sua estreita boca de lábios finos, passando pela garganta e esôfago até invadir seu próprio estômago, revirando freneticamente suas entranhas em busca de algo, assim como os abutres fazem com a cabeça enfiada na carcaça em decomposição.

O que estava no alto observa com náuseas a cena, já percebendo o que está prestes a acontecer, de alguma forma a estranha criatura sabia que o rapaz havia escondido o precioso talismã em seu interior e o estava obrigando a procurar em seu próprio corpo, o pequeno objeto que há pouco engolira a fim de preservá-lo. Realmente era o fim, realmente, se já não estava morto, em breve morreria. Enquanto seu corpo tremia como o de uma criança que convulsiona, a procura pelo talismã em seu esconderijo visceral continua. Das laterais da boca, exageradamente aberta assim como a das cobras quando engolem uma presa grande demais, escorria sangue em grande quantidade. A mão de dedos longos e unhas sempre aparadas, agora no interior do estômago, sangrava através de dois grandes cortes produzidos pelos compridos e afiados dentes muito brancos e alinhados que possuía da cavidade bucal que acabara de invadir, estava sentindo os efeitos corrosivos do suco estomacal, terrivelmente ácido e concentrado devido ao longo período de jejum.

A criatura se estremece, emitindo um som longínquo que mais parecia o gemido triste e fúnebre das vigas de um velho galeão que passa por uma tempestade violenta, podendo-se quase distinguir nas notas mais altas os trovões raivosos lançando seu brado aos sete mares. Em um movimento rápido e inesperado, como o bote certeiro e calculado de uma serpente a estranha forma avança sobre o rapaz ficando a um palmo deste, que continua freneticamente revolvendo seu interior com sua mão, que agora já começa a ter sua pele, músculos e tendões desfeitos pela ação do suco gástrico, à procura de um objeto sólido, com o tamanho e forma que lembram um olho fora de sua órbita. Agora a criatura estava posicionada entre o observador e o rapaz, sendo também parcialmente iluminada pelas variações de cores que o néon produzia. A fraca luz que a iluminava, a atravessava, como a luz de uma geladeira aberta incidindo sobre uma gelatina, mas não chegava ao outro lado. Não havia nele detalhes para serem observados, também não podiam ser distinguidos os limites de seu corpo, parecia mais um monstro mal feito, saído de um cinema trash de quinta categoria. Porém essa forma bizarra carregava algo em si que assustava e que paralisava de medo, talvez pelo simples fato de ser ridícula e simples demais para justificar sua existência, talvez por ter sido capaz de obrigar o rapaz a revirar suas entranhas com sua própria mão sem ao menos tocá-lo.

Mais uma vez o ruído frenético das castanholas é ouvido e os tremores no corpo do rapaz cessam. Sem pressa o braço do rapaz desliza para fora, completamente coberto de sangue, sua boca permanece escancarada, bochechas flácidas e pálidas contrastavam com o vermelho vivo de sangue que as cobria. Nas mãos não mais havia pele ou carne, apenas podia ser visto brancos ossos e tendões, ora azulados, ora avermelhados pelo brilho oscilante do néon. As batidas descompassadas das castanholas continuavam cada vez mais rápidas, e o rapaz estende seu braço e sua mão quase completamente corroida atravessando lentamente a matéria que formava aquele ser. Nem sinal do talismã ou algo que interessasse à criatura, que pareceu aumentar e dobrar de tamanho enquanto emitia um ruído semelhante ao pio agourento de uma coruja, misturado ao coaxar nervoso de um sapo sob a chuva. Aumentou tanto que ao som de um baque surdo desfez-se no ar como as espirais errantes da fumaça de um cigarro que queima solitário em um cinzeiro dentro da boate onde os homens de andar rápido passam a vida a apostar o que não possuem, a fim de ganhar o que não lhes pertence para poder, novamente, empenhar tudo em uma nova cartada.

Um comentário:

Unknown disse...

ótimo conto!

parabéns!